Governos que antecipam desafios e soluções podem mitigar riscos e potencializar ganhos
(*) Maria Letícia Machado
Os desafios enfrentados pelos governos são complexos e variados, envolvendo uma gama de fatores interconectados que podem dificultar a tomada de decisões. No campo da saúde, estamos diante de possibilidades como o surgimento de novas pandemias, desafios climáticos e novas demandas relacionadas ao envelhecimento populacional.
Por essa razão, instituições como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) defendem que os governos precisam aprender a criar conhecimento sobre o futuro e tornar a antecipação de soluções algo viável por meio da implementação de inovações.
A inovação em políticas públicas, ao seu turno, é um conceito multifacetado, mas podemos simplificá-lo adotando dois princípios básicos: inovação é o processo de desenvolver ações que produzem novos resultados na resolução de problemas de interesse coletivo; e uma boa inovação é aquela que efetivamente resolve desafios da vida real.
Esses princípios foram abordados em uma publicação do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e da Umane, que identificou pontos críticos no Sistema Único de Saúde (SUS) que se beneficiariam de processos inovativos, considerando as etapas pré-clínica, clínica e pós-clínica percorridas pelos usuários.
Embora nem todos os projetos de inovação incluam tecnologias digitais, em nossa era hiperconectada, esses conceitos costumam se confundir. Quando inovar em políticas públicas envolve tecnologias emergentes, surge um dilema essencial: o desafio simultâneo de gerenciar a informação e o tempo. Com frequência, nos estágios iniciais, o potencial de uso e suas consequências não são plenamente compreendidos pelos desenvolvedores de tecnologia. É apenas com o tempo que os efeitos sobre as pessoas usuárias e a sociedade se tornam mais nítidos.
Nesse contexto de maturação, a proposta de regulamentação de abordagens, aplicações e estruturas já estabelecidas se torna crítica. O ritmo acelerado do desenvolvimento tecnológico, especialmente em áreas como a saúde digital e a biotecnologia, costuma superar a capacidade de regulação adequada. Isso gera questões éticas e bioéticas que expõem a sociedade a riscos consideráveis, como a privacidade dos dados dos pacientes, a segurança dos tratamentos e a equidade no acesso às inovações.
Por outro lado, aguardar uma regulamentação perfeita pode impedir avanços significativos e limitar os ganhos potenciais para o sistema de saúde, que já enfrenta desafios estruturantes onde há amplo espaço para inovar.
Diante desse cenário, é fundamental estabelecer estruturas de governança antecipatória para inovações, especialmente aquelas que utilizam tecnologias digitais. Essa abordagem assegura que as inovações considerem, desde o início, elementos mínimos de regulamentação e boas práticas de desenvolvimento.
Para isso, é importante implementar diretrizes nacionais, consultar especialistas e atores-chave, além de incluir ativamente a sociedade civil e elaborar políticas de fomento estruturado. Essa governança deve ser capaz de mapear quais resultados queremos promover e quais devemos evitar, permitindo a experimentação em ambientes controlados para gerar provas de conceito antes da implementação em larga escala.
Um exemplo prático que ilustra o dilema entre a informação e o tempo, conhecido na literatura como o “dilema de Collingridge“, é o desenvolvimento de plataformas de redes sociais. Embora representem um avanço significativo nas telecomunicações, essas plataformas podem ter implicações adversas para a saúde mental, como o estímulo à comparação social e a disseminação de desinformação.
Estudos publicados na última década evidenciam a necessidade de regulamentações ex post que abordem a moderação de conteúdo e definam penalidades mais severas para crimes virtuais, destacando que a rápida evolução tecnológica requer um acompanhamento crítico e proativo.
Outro exemplo mais centrado nas inovações decorrentes do uso de tecnologias digitais em saúde é a aplicação da inteligência artificial para apoiar a tomada de decisões clínicas. Essa prática já está sendo implementada em hospitais públicos e privados no Brasil, mas carece de regulamentação adequada.
A adoção apressada de sistemas de inteligência artificial não testados pode resultar em erros clínicos, danos aos pacientes e minar a confiança nas tecnologias. Portanto, torna-se essencial refletir sobre a necessidade de uma governança antecipatória, especialmente à luz das discussões promovidas pelo G20 e da proposta do Brasil de um Plano Brasileiro de Inteligência Artificial para os próximos quatro anos.
Outra questão crucial é reconhecer o distanciamento significativo em capacidade inovativa, desenvolvimento tecnológico e governança entre países de renda alta e aqueles de média e baixa renda. Embora possamos nos inspirar nas experiências bem-sucedidas dos primeiros, é fundamental não supor que essas soluções se apliquem diretamente a contextos tão diversos.
A adaptação às especificidades locais é essencial para que as políticas públicas atendam efetivamente às necessidades de cada população e promovam um avanço equitativo em saúde. Assim, os formuladores de políticas devem garantir que as inovações beneficiem a todos, especialmente os mais vulneráveis.
Além disso, os gestores precisam estar atentos a processos improvisados, que são particularmente relevantes em cenários de escassez de recursos. Nesses ambientes, a inovação surge mais da necessidade de adaptação do que de processos elaborados de pesquisa e desenvolvimento.
Portanto, reconhecer e normatizar experiências — sejam elas relacionadas a tecnologias digitais ou não — é crucial para fomentar a capacidade antecipatória dos governos, permitindo soluções que realmente atendam às demandas locais.
SIEBRA, Marcos Toscano. Governança antecipatória da inteligência artificial no setor de saúde: o que dizem os policy papers internacionais. Rio de Janeiro: Ipea, maio 2024. (Diset: Nota Técnica, 135). DOI:http://dx.doi.org/10.38116/ntdiset135-port. Acesso em: 24 out. 2024.
DEMOS HELSINKI, Helsinki. What is the Collingridge dilemma? Tech policy. 15 fev. 2022. Disponível em:https://demoshelsinki.fi/2022/02/15/what-is-the-collingridge-dilemma-tech-policy/. Acesso em: 24 out. 2024.
Instituto de Estudos para Políticas de Saúde & Umane. (2021). Inovação em Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto de Estudos para Políticas de Saúde.https://ieps.org.br/panorama-ieps-03/
(*) Maria Letícia Machado: Cientista política formada pela UFPE, com especialização em Liderança e Gestão Pública pelo Centro de Liderança Pública. Atualmente, é Gerente de Políticas Públicas no Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), onde se dedica especialmente à área de tecnologia e inovação em saúde